Pelas mãos e pela fé: a história da família Prata e o seu legado na saúde pública brasileira
O Diário - 27 de junho de 2025

Homenagem da Santa Casa de Santos ao Dr. Ranulpho Prata - Dra. Cristina Prata Amendola, Henrique Duarte Prata, Clarice Duarte Prata, Dr. Ariovaldo Feliciano, Eliana Lopes Feliciano
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Há histórias que não pertencem apenas a uma família, pertencem a uma comunidade, a uma sociedade, a um país. A trajetória da família Prata é uma dessas. Nascida e formatada entre os sertões de Sergipe e pequenas cidades do interior e litoral paulista, ela se tornou um dos pilares mais sólidos da saúde pública brasileira. Seu legado atravessa quase dois séculos de história, unindo fé, ciência, coragem e um compromisso incansável com o cuidado ao outro.
Em histórias tão grandiosas como essa, é quase impossível travarmos um marco inicial. Mas encontramos no nome de Anna Hora Prata uma boa ponta para essa linha do tempo. Nascida em 1862, em Lagarto, no interior de Sergipe, ficou conhecida como uma mulher de fé profunda, foi benfeitora e cofundadora, ao lado de outras lideranças locais, do Hospital Bom Jesus, inaugurado em 1919 na cidade de Simão Dias. Num tempo em que a saúde era um privilégio distante do interior nordestino, Anna ousou acreditar que era possível oferecer dignidade a quem mais precisava. Sua influência atravessou o tempo, não por obras que levam seu nome, mas pelos valores que plantou e que floresceram nas gerações seguintes.
Foi sob essa influência que seu filho, Dr. Ranulpho Prata, nasceu, em 1896. Médico, professor, escritor e, acima de tudo, um pensador social. Atuou na implantação da radiologia em hospitais de Aracaju, Santos e outras cidades brasileiras, sendo um dos pioneiros na especialidade no país. Ranulpho também foi um nome marcante do modernismo literário, produzindo obras de forte cunho social, que uniam sua sensibilidade médica à capacidade de enxergar a realidade brasileira com olhar crítico e generoso. Faleceu em 1942, em São Paulo, mas deixou uma marca indelével na cultura e na saúde do Brasil — marca essa reconhecida até hoje, como na recente homenagem recebida por seu neto, Henrique Prata, prestada pela Santa Casa de Santos, que reinaugurou o setor de radiologia sob o nome de “Serviço de Radiologia Dr. Ranulpho Hora Prata”.
Entre o nome de Ranulpho e a mão que recebe essa homenagem, existe um importante elo: Dr. Paulo Prata, nascido em 1924. Filho de Ranulpho, Paulo tornou-se um médico humanista e cientista premiado, que fundou, em 1962, um hospital que viria a ser o primeiro especializado em câncer com atendimento gratuito no interior do estado de São Paulo — um feito inédito à época. Nascido em Mirassol e formado em medicina pela USP, enxergava na oncologia não apenas uma ciência, mas uma urgência moral. Seu olhar clínico nunca se separou do olhar compassivo e amoroso. Em Barretos, deu forma a um sonho: um hospital onde ninguém fosse recusado. Onde a dor do outro fosse tratada com técnica, mas também com misericórdia.
Esse sonho, no entanto, não foi só dele. Ao seu lado, esteve sempre Dra. Scylla Duarte Prata, também formada pela USP e que desde os anos 1950 já realizava exames preventivos ginecológicos no interior paulista — em um tempo em que saúde da mulher era tabu, ela cuidou de todas, sem distinção. Scylla, que faleceu recentemente, foi cofundadora do Hospital de Amor e presença fundamental em sua consolidação. Sua atuação quase silenciosa aos ouvidos e olhos externos, mas constante, foi uma das maiores expressões de cuidado e entrega dessa história.
O casal, movido por fé e compaixão, não apenas ergueu paredes de um hospital, construiu e ensinou um novo modo de tratar o câncer no Brasil.
Quando a saúde do Dr. Paulo começou a declinar e o hospital enfrentava dificuldades para se manter, foi o filho do casal (talvez o mais improvável entre os cinco), Henrique Prata, quem assumiu o leme. Empresário e agropecuarista de sucesso formatado por seu avô materno, Henrique poderia ter seguido – e até então seguia – outro rumo. Mas entendeu, como ele mesmo diz, o seu chamado. E atendeu. À frente da instituição, ele não apenas salvou o hospital da falência, o transformou em um dos maiores e mais respeitados centros de tratamento oncológico do mundo.
Sob sua liderança, o antigo Hospital de Câncer de Barretos passou a se chamar Hospital de Amor — nome que traduz com precisão o espírito da obra. Hoje, são 24 unidades fixas de prevenção, 52 unidades móveis, oito unidades fixas de tratamento e três de reabilitação, espalhadas por diferentes regiões do Brasil. Tudo 100% gratuito. Tudo sustentado pela fé, pelo trabalho árduo e por uma certeza que nunca o abandonou: de que esta missão é maior do que ele.
Henrique costuma dizer: “Quando os recursos acabam, é quando os milagres começam”. Para ele, não é frase de efeito, é testemunho de vida. E é por isso que, ao presenciar a homenagem ao seu avô Ranulpho, tantos anos depois, ele não estava apenas honrando a memória da família. Estava, mais uma vez, fechando o ciclo de um legado que começou no sertão de Sergipe, atravessou o Brasil e floresceu em nome de milhões de vidas.
A história da família Prata é, acima de tudo, uma história de providência. Não apenas no sentido divino — embora esse seja central —, mas no sentido de que alguém, em algum momento, precisava fazer o que eles fizeram. E eles fizeram. Com fé, com coragem, com amor.
E continuam fazendo. Todos os dias. Um legado que ainda ecoa.