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Uma moeda, tantos sonhos

O Diário - 19 de agosto de 2025

Uma moeda, tantos sonhos

KARLA ARMANI MEDEIROS, historiadora e titular da cadeira 7 da ABC – www.karlaarmani.blogspot.com / @profkarlaaramani 

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Dias atrás, meu pai encontrou uma moeda de 1944 em seu quintal, era de 50 centavos. Dourada, a moeda estampava o rosto de Getúlio Vargas, então presidente do Brasil. Encantada, pedi-a ao meu pai, que não teve outra saída a não ser render-se a quase súplica da filha historiadora. 

Meu encantamento deu-se não pelo objeto em si, pois é apenas mais uma moeda antiga entre tantas por aí, mas sim ao que ela carrega de humano. Afinal, aprendi com Marc Bloch: “O historiador é como o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça”. Um objeto antigo não é matéria bruta, é um amontado de camadas que podem revelar vida e produção humana. É preciso deixar a História lapidá-lo.

O local onde a moeda foi encontrada é particularmente fascinante, trata-se do quintal onde hoje mora o meu pai. Quando eu era criança, nesse quintal morava a nossa vizinha e ele era meu universo particular, onde as árvores frondosas serviam a mim e às vizinhas como cenário à fantasia infantil. Eu vivi nesse quintal nos anos 1990, mas antes disso alguém morou e construiu toda uma vida nele – provavelmente o dono da moeda.

Tal quintal é parte de uma casa no bairro América, local que começou a ser loteado no início dos anos 1950, exatamente a época da moeda. Antes de ser loteado, o bairro era uma grande chácara da família Ferreira de Morais e vizinho, onde também passava a estrada boiadeira (hoje Frade Monte). Depois, as terras foram vendidas ao loteador Rubens Baroni, transformando-se na promissora Vila América. É nesse contexto que as famílias do meu pai e da minha mãe se mudaram para lá, nos anos 1960. Serviu a vila América como moradia a diversas famílias que tinham praticamente a mesma origem: o campo. Pais, mães e filhos que trabalhavam em fazendas de Barretos, Colina, Jaborandi e outros municípios, se destinaram para a cidade enxergando naquele lugar um novo começo de vida. Foi, portanto, a vila América o sonho de muita gente, e as casinhas antigas que lá existem até hoje são a materialidade disso, assim como a moeda desenterrada por meu pai. Não consegui deixar de pensar que foi de moeda em moeda que aquela gente construiu casas, muros, quintais e sonhos.