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Territórios indígenas no tempo e no espaço

O Diário - 31 de janeiro de 2024

Territórios indígenas no tempo e no espaço

Francisco de Godoy Bueno Advogado. É sócio do Bueno, Mesquita e Advogados e membro do Conselho Superior da Sociedade Rural Brasileira e do Conselho Superior de Agronegócio da FIESP

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Desde 1854, quando, por ordem do imperador D. Pedro, se tentou estabelecer o cumprimento da Lei de Terras, de 18 de setembro de 1850, o regulamento fundiário brasileiro preocupa-se em reservar e conhecer aos povos indígenas um território próprio. O Decreto imperial nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854 reconheceu as posses constituídas e identificar as terras devolutas remanescentes, para que fossem medidas e destinadas pelo imperador, inclusive mediante a venda a particulares. Ficou ali expressamente definido que parte das terras devolutas deveriam ser reservadas “para a colonisação dos indígenas”.

Terminado o império e passados mais de 130 anos de período republicano, é trágico que não tenhamos superado o drama de ordenação fundiária do nosso vasto território. Tal qual já ocorria à época do império, a preservação de territórios indígenas continua sendo uma das principais fontes de conflitos e demandas agrárias do país.

De lá para cá, é verdade, muito já foi feito. Atualmente, são reconhecidos 766 Territórios Indígenas (Tis), ocupando uma extensão total de 117.898.925 hectares (1.178.989 km²). Ou seja, 13.9% das terras do país são reservados aos povos indígenas. Não é pouco. Trata-se de uma área do tamanho maior que a da França e da Espanha juntas, para uma população de um pouco mais de 517 mil habitantes (2010). Para se ter uma outra ideia de grandeza, essa área é praticamente o dobro do que há de lavouras agrícolas no país, que somam, segundo a Embrapa, algo como 66 milhões de hectares (663.807 km²), ocupando apenas 7,8% do território nacional.

A questão indígena, entretanto, ainda é apontada como uma das principais causas dos conflitos fundiários no Brasil. Esses conflitos podem ser classificados em 2 (duas) diferentes categorias. Em primeiro lugar, aqueles que se estabelecem para a manutenção da posse exclusivamente indígena em territórios já demarcados. Em segundo lugar, os conflitos que emergem da da demarcação de novos territórios indígenas.

Segundo dados da FUNAI, autarquia responsável pela administração dos territórios indígenas e pela tutela desses povos, protegidos pela Constituição Brasileira, 92% dos territórios demarcados são pacificados e não são objeto de invasões. Os conflitos fundiários para a garantia da posse indígena, portanto, é restrito a uma parte residual desse território, correspondente a 8% da área total, onde o órgão público não se mostra efetivo em manter a ocupação restrita a populações indígenas. 

Numa perspectiva territorial da dimensão brasileira e tomados em consideração os desafios da gestão pública nacional, pode-se dizer que os conflitos fundiários em territórios indígenas já demarcados encontram-se dentro de um padrão de normalidade. Sem dúvida, seria melhor que o órgão estatal pudesse garantir na plenitude o gerenciamento do território sob sua administração, mas é de se destacar que uma eficácia de 92% de sucesso.

No tocante aos territórios não demarcados, por outro lado, os conflitos fundiários fogem a uma situação de normalidade. Nesse sentido, é preciso deixar claro que a maior parte desses territórios não são, atualmente, ocupados por populações indígenas. Tratam-se, assim, de áreas rurais e urbanas, ocupadas por populações brasileiras não indígenas e que são reivindicadas com fundamento no direito originário pleiteado com base nos usos, costumes e tradições dos povos indígenas.

O conflito fundiário nesse caso, portanto, não decorre de uma invasão de uma área indígena estabelecida, mas de um processo de reivindicação, pelos remanescentes de povos indígenas, que pleiteiam o reconhecimento de um território, que seria essencial para a manutenção de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, sobre terras que já estão ocupadas por não índios e muitas vezes são registradas como sendo de propriedade privada, há mais de 20, 30, 40, 50, 100 anos.

O Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996 estabelece a possibilidade de demarcação de novos territórios indígenas, reconhecidas com fundamento em trabalhos de antropologia. Conforme deixou claro o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 1031 de Repercussão Geral, o procedimento demarcatório tem eficácia declaratória e não depende de um marco temporal ou comprovação de renitente esbulho, sobrepondo, inclusive a títulos de propriedade já existentes, que são considerados nulos de pleno direito.

Ao permitir a desconstituição de posses e propriedades juridicamente constituídas com fundamento no parecer de estudos antropológicos, os processos de demarcação representam, portanto, um elemento de promoção e incentivo de conflitos fundiários, não de sua pacificação. De fato, o grau de incerteza e subjetividade que envolve esse tipo de estudo e a ilimitada pretensão de grupos de interesse pela ampliação de territórios sob sua gerência, impossibilitam que se estabeleçam diretivas claras na disciplina do território.

O conflito fundiário não interessa aos povos indígenas, vulneráveis em sua miséria e condição social, e muito menos aos brasileiros que possuem posses e propriedades rurais constituídas de boa-fé e justo título há mais de 30 anos. É absurdo, portanto, dar ensejo a um recrudescimento dos conflitos fundiários como causa político-ideológica em favor de direitos originários imprescritíveis, que se sobreponham ao direito civil e ao direito de propriedade.

Se é verdade que os povos indígenas persistem credores da atuação governamental em defesa de sua proteção e de sua cultura, essencial ao reconhecimento de nossa identidade nacional, é ainda mais verdade que a efetiva garantia de prosperidade à população brasileira só irá ser alcançada quando se conseguir estabelecer com solidez e estabilidade os direitos fundiários sobre o território brasileiro. Que não precisemos aguardar outros 130 anos!